sexta-feira, abril 18, 2008

Credos em conflito na terra do sincretismo




Uma das perguntas que os pesquisadores fizeram aos brasileiros no último Censo do IBGE, em 2000, foi: “Qual é a sua religião?”. A essa questão aparentemente singela, os brasileiros deram cerca de 35 mil respostas diferentes. Não é preciso ser nenhum Gilberto Freyre para saber que sincretismo é coisa nossa, mas que tamanha criatividade surpreende, lá isso surpreende. Com o auxílio de um instituto especializado, os pesquisadores reduziram a lista de religiões, credos e assemelhados (incluindo os sem-religião e os que não enquadram sua fé em lugar nenhum) para apenas 5 mil, chegando depois ao número básico de 144.

Vale dizer que a lista inicial alcançou tamanha variedade porque incluiu respostas como o nome de uma igreja específica – e a multiplicação de denominações é uma das características dos evangélicos de linha pentecostal, cujo crescimento é um dos fenômenos mais importantes do campo religioso brasileiro das últimas décadas. Segundo levantamento divulgado no ano passado pela Fundação Getúlio Vargas, os evangélicos chegaram a 17,9% da população (eram 15,45% pelo Censo de 2000 e 9,05% em 1991).

Uma das novidades do cenário, especialmente a partir dos anos 80, foi a ascensão dos neopentecostais, que têm entre suas características a adoção da chamada “teologia da prosperidade”. De acordo com ela, ostentar bens de consumo e símbolos de status e prestígio social traduz as bênçãos divinas de acordo com o tamanho da fé do indivíduo e daquilo que ele está disposto a dar para receber. A denominação mais conhecida do segmento é a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), fundada em 1977 por Edir Macedo.

Embora o Brasil goste de se imaginar um dos campeões mundiais da convivência pacífica entre os mais diferentes grupos, é um erro pensar que as religiões sempre coexistiram harmoniosamente. O livro Intolerância religiosa – Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro, recentemente lançado pela Editora da USP (Edusp), faz um alentado histórico dessas relações e uma detalhada radiografia do que mudou com o protagonismo de igrejas como a de Macedo. “Historicamente, sempre houve disputas religiosas. Se pensarmos na formação da sociedade brasileira, o catolicismo dominante sempre foi uma religião imposta para as outras”, diz o professor Vagner Gonçalves da Silva, docente do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e organizador do volume. “O que está acontecendo a partir dos anos 70 e 80 é um processo mais acirrado, porque está havendo uma desqualificação sistemática de um segmento cristão, o neopentecostal, contra outro, que é o afro-brasileiro.”

A escolha do título do livro não foi ingênua nem obra do acaso, salienta o professor, porque, mesmo que nunca tenha havido uma aceitação plena das religiões afros, não se criava no plano nacional uma visão tão negativa desse sistema como a que ocorre hoje. Boa parte do novo quadro se deve à estratégia que diferenciou a Iurd: a demonização liminar dos cultos afros e de suas entidades.

Em artigo publicado no livro da Edusp, o professor Ari Pedro Oro, docente de Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, registra o que o próprio Edir Macedo “explica” em seu best-seller Orixás, caboclos & guias: deuses ou demônios?: “Tudo o que existe de ruim neste mundo tem sua origem em satanás e seus demônios. São eles os causadores de todos os infortúnios que atingem o homem direta ou indiretamente”. Portanto, para a Universal, continua Oro, citando a pesquisadora Mônica do Nascimento Barros, “‘o diabo não é somente a antítese (o arquiinimigo) de Deus. Ele é a encarnação do mal; uma presença constante (e ameaçadora) na vida e no cotidiano das pessoas’. Disso resulta que as representações do diabo ‘constituem o eixo a partir do qual o universo simbólico dessa igreja é construído’.”

Mídia e política – Os ataques sistematizados vêm plantando as sementes de situações claras de discriminação e intolerância. Várias delas estão citadas no livro, como tentativas de interrupção forçada de cerimônias públicas em praias ou ruas por evangélicos que pregam com carros de som e fazem distribuição de panfletos contra os rituais afros. O cenário fica ainda mais complicado porque as disputas invadiram outras arenas, como a mídia e a política. A Iurd é proprietária há quase 20 anos da Rede Record, o que acirra seu antagonismo com a Rede Globo, tradicionalmente ligada ao catolicismo (a emissora transmite semanalmente a Santa Missa com o padre Marcelo Rossi e não poupou munição para fustigar a rival em ocasiões como o “chute na santa”, em 1995).

Na política, os evangélicos também vêm conquistando espaço em cargos no Legislativo e no Executivo, e tentam se utilizar de suas prerrogativas para fazer proselitismo. Em Pato Branco (PR), um vereador quis cassar uma coleção didática que aborda a cultura e a religião afro-brasileira – tratava-se de um “livro do demônio”. “À medida que se associa o sistema religioso ao mal, associa-se também toda uma herança que está em torno desse sistema”, diz o professor Vagner Gonçalves da Silva. “O preconceito típico da sociedade brasileira aflora não mais no discurso em relação ao negro em si, mas sim no sentido de que os elementos que essa herança trouxe não são positivos.”

Ricardo Mariano, doutor em Sociologia pela USP e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, aponta em seu artigo que, na segunda metade do século 19, a escravidão e o racismo “resultaram em franca perseguição religiosa ao candomblé e punição a seus seguidores”. Mais tarde, “o ‘baixo espiritismo’, designação por meio da qual candomblé e umbanda foram sistematicamente desqualificados e rebaixados nos planos moral e religioso, foi mantido sob forte repressão institucional até a década de 1940”. Acusações e ataques pela imprensa, polícia e Justiça estão documentados. Exemplo está no clássico As religiões do Rio, de João do Rio, relançado em 2006. Na coletânea de artigos, do início do século 20, o escritor descreve respeitosamente grupos como a Igreja Metodista e os positivistas, mas reserva aos textos em que se refere a suas visitas aos terreiros expressões como “farsa pueril e sinistra” e “ópera pregada aos incautos”.

Reação – Para o professor Silva, cabe aos grupos afro-brasileiros superar suas próprias divisões – entre adeptos do candomblé e da umbanda, por exemplo – e buscar se expor à cena pública das mais diferentes formas, a fim de mostrar as discriminações e defender seus direitos. “É preciso recorrer à Justiça, à política e à mídia, quando isso for possível, mas sabendo das dificuldades nas três áreas. Os casos têm mostrado que, quando se organizam, as religiões afros têm conseguido ganhar processos na Justiça”, diz.

O mais emblemático deles foi o da indenização à família de Mãe Gilda, mãe-de-santo cuja foto apareceu numa edição do jornal Folha Universal, da Iurd, em 1999, numa matéria intitulada “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. A foto foi reproduzida de uma edição da revista Veja de 1992, em que Mãe Gilda aparecia numa manifestação pelo impeachment de Fernando Collor. Em 2004, o juiz da 17ª Vara Cível de Salvador assinou sentença que obrigava a Iurd a indenizar os familiares em R$ 1, 372 milhão por danos morais (o equivalente a R$ 1,00 para cada exemplar da edição, valor que acabou reduzido posteriormente). De acordo com a família, Mãe Gilda faleceu de tristeza três meses depois da difusão da matéria no jornal da Universal.

Intolerância religiosa – Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro, de Vagner Gonçalves da Silva (organizador), Edusp, 328 páginas, R$ 48,00.


Universal criou seus próprios exus

Paradoxalmente, a ênfase da Igreja Universal na importância dos demônios das religiões afro-brasileiras e na sua expulsão e subjugação – pelos seus pastores nos templos iurdianos, claro – criou uma dependência curiosa. “O neopentecostalismo adotou o diabo como protagonista, tornando-se refém de quem pretendia aprisionar, pois o que seria do céu sem o inferno, da glória do vencedor sem as contínuas legiões de vencidos?”, pergunta o professor Vagner Gonçalves da Silva no artigo que assina em Intolerância religiosa – Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. Ele cita Ronaldo de Almeida, docente da Unicamp, que diz que a Iurd acabou criando seu próprio panteão de exus e pombagiras para expulsar dos fiéis.

“Considerando a dicotomia existente nesse plano entre o bem e o mal, e que o sacrifício pleno de um desses lados (o do Cordeiro de Deus) já tenha ocorrido para a salvação dos homens, nas sessões neopentecostais sacrifica-se continuamente o demônio (na condição animalesca que assumem os transes de exus e pombagiras) como forma de se garantir a comunicação com o sagrado. Ou seja, se Cristo morreu em nome desse fluxo, agora se trata de sacrificar o ‘anticristo’, ou o demônio/exu, para garantir a continuidade do fluxo”, continua Silva. “Se o exu africano foi batizado de diabo cristão e se converteu em exu brasileiro, agora este, vestindo a carapuça, rouba a cena nos cultos neopentecostais se passando por demônio. Versões diferentes de um mesmo mito no qual Exu, Satanás ou Jesus são caminhos de uma mesma jornada. Ou, como cantam os umbandistas: Exu tem duas cabeças/ Exu faz sua gira de fé/ Na esquerda é Satanás do inferno/ Na outra, Jesus de Nazaré.”

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